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Crónicas

O Degrau

November 23, 2015

Por João Pessoa

 

Crédito de Imagem: Google Imagens.

 

Na construção daquela rua o encarregado de obra ia dando as ordens aos trabalhadores.

 

“Eh, Tóino não te esqueças que o passeio nesse sítio tem que ser rebaixado!”- Disse o encarregado gritando.

O Tóino perguntou: “ Qual é a altura?”

 

A altura é mais ou menos três centímetros, respondeu o encarregado, e acrescentou, mas se não der, acaba com a altura que te der mais jeito.

 

Neste momento ia a passar a dona Alice, que ouviu esta resposta e não gostou. Não gostou porque tem em casa um filho tetraplégico que anda em cadeira de rodas, eléctrica, e sabe das dificuldades dele. E claro, chamou a atenção do encarregado da importância daquelas medidas.

 

O encarregado, à laia de brincadeira disse-lhe, “Ó minha senhora, qualquer roda sobe três ou cinco centímetros, e se não subir, qualquer pessoa ajuda a pôr as rodas no passeio.”- Disse isto rindo, achando que era um assunto sem importância.

Só que dona Alice sabia do que estava a falar. Sabia o que o seu filho sofria por ser já tão dependente dos outros e ansiar poder fazer alguma coisa sózinho.

 

Ó senhor encarregado, ao menos cumpra com o que está estipulado aí no plano de obra. Isto tem normas a cumprir e mesmo essa que está na lei, está mal, porque diz que o rebaixamento tem de ficar ATÉ TRÊS centímetros, quando devia obrigar a uma altura ZERO, porque as rodas das cadeiras eléctricas, são bem mais pequenas que as outras e as pessoas com deficiência, têm dificuldade em subir e descer os passeios desta cidade, ou melhor, de todas as cidades e vilas deste País.

 

“Ó minha senhora, quem é o encarregado da obra sou eu, a senhora não percebe nada disto e é melhor ir tratar da sua vida!” – Respondeu o encarregado com ar de enfado e sem querer dar mais conversa à senhora, achando que era um atrevimento ela meter-se em trabalhos que não percebia nada.

 

A senhora, muito aborrecida e nervosa com a resposta, ainda disse que “é por estas coisas simples, de não aplicação da lei, é que há tanta discriminação e desigualdade de tratamento, neste país.”- E lá foi andando para casa que ficava logo no prédio ao lado das obras.

 

E os pedreiros continuaram a fazer o trabalho habitual, conforme lhes dava mais jeito, esquecendo que nos passeios, circulam milhares de pessoas, para irem para o trabalho, irem para as compras, irem para a escola, irem, simplesmente, passear.

Hoje, escrevo apenas acerca do DEGRAU, para justificar o título desta crónica que passará a ser habitual, neste nosso jornal, mas nas crónicas seguintes, irei abordar outros obstáculos urbanos, que tanto prejudicam, na sua mobilidade, as pessoas com deficiência motora, mas também as pessoas mais idosas e até, as crianças.

 

Voltamos ao tema da crónica de hoje…

 

Passados uns quinze minutos, a dona Alice reapareceu na entrada da porta, agora acompanhada por uma pessoas a ser transportada numa cadeira de rodas eléctrica. E começaram a dirigir-se para o local onde o pedreiro estava a fazer o rebaixamento do passeio.

 

O Carlos, filho da dona Alice, parou em frente do pedreiro. Mesmo em frente dele. Olhando-o fixamente. Sem dizer uma única palavra.

 

O pedreiro concentrado no seu trabalho, nem deu conta da presença do Carlos, e o Carlos, adiantou mais um pouco a cadeira. Repetiu este movimento várias vezes, até chegar bem à beira do passeio onde estava o pedreiro e atrapalhando os trabalhos dele.

Foi então que num repente o trabalhador parou quase irritado, e olhou para cima para ver quem estava ali. E viu o Carlos.

O Carlos, apenas movia os dedos das mãos, para usar o pequeno manipulo, que fazia andar o veículo. Os braços tinham pouca articulação e o pescoço apenas conseguia virar para a esquerda e para a direita.

 

Então o Carlos disse: “Eu gostaria de poder atravessar a rua só para poder ir ali ao café em frente, beber uma cerveja sem ter que pedir ajuda à minha mãe, ou ao meu irmão, ou ao meu vizinho, ou a alguém desconhecido, acha que tenho direito a isso, ou acha que devo ficar escondido em casa, para que a sociedade viva com a consciência tranquila, onde o senhor está incluído?”

A mãe ficou atrás da cadeira do Carlos, uns dois metros. Deixou o filho resolver a situação. Ela queria criá-lo de modo a ele saber enfrentar este mundo desumanizado. Ela assistia toda orgulhosa do seu filho. Ele já tinha trinta anos, já estava licenciado em engenharia informática e estava a terminar o mestrado. Ela sabia que no fim deste ano o filho iria enfrentar a falta de emprego, as humilhações, as discriminações e a falta de vontade em transformar o País num sítio mais inclusivo. Aquele pequeno degrau de três centímetros, seria a grande barreira dele para poder descer o passeio. Mas não só, representaria a grande barreira de ele poder conhecer o mundo. De ter o mesmo direito de viver uma vida sem ter que pedir aos outros ajuda, para as tarefas mais simples.

O pedreiro olhando para o Carlos, percorrendo o olhar pela cadeira, desde o assento até às rodas pequenas da frente, até que parou o olhar, perturbado. O encarregado da obra, que estava a uns trinta e tal metros, percebeu que havia ali algo estranho, aproximou-se e teve o mesmo comportamento, olhando prolongadamente, o Carlos. Tudo em silêncio. Depois, aqueles dois trabalhadores cruzaram o olhar parecendo não saber o que fazer.

 

O Carlos, silenciosamente, observou tudo. A dona Alice, parecia que sabia o que ira passar-se a seguir, porque esboçou um sorriso, por ter a certeza de que aqueles homens entenderam um problema tão grande para o seu filho, por causa de uma coisa tão simples e que podia facilitar a vida de muitos milhares de pessoas.

 

Foi então que o encarregado da Obra, parecendo acordar para um mundo diferente, começa a dar ordens, aos com voz rouca e sonora:

 

“Tóino, esse passeio passa a ter cota ZERO e suaviza mais a rampa! Êh, vocês desse lado do passeio, tenham cuidado com a inclinação da rampa e a cota tem que ZERO, ouviram? - A partir de agora todas as obras têm que ser construídas com estas regras, pessoal!”

 

O Carlos, passado um mês, já com as obras acabadas, saiu de casa sózinho, atravessou a rua, descendo o passeio facilmente, e subiu o outro em frente, do mesmo modo. Ele sentia-se livre, vivo e com grande emoção.

 

Entrou no café sorrindo e pediu:

“Uma bica, se faz favor!”

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