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Depoimentos

Quando se Sente Orgulho pelo Trabalho Feito

November 23, 2015

Por Carlos Nogueira.


Créditos Imagem: Carlos Nogueira.

 

 

Sinto um orgulho imenso por ter realizado o meu estágio curricular no Núcleo de Apoio aos Sem-Abrigo da Câmara Municipal de Lisboa, no âmbito da minha licenciatura em Serviço Social (ISCTE).
 

Quando a cidade adormece, eles saem à rua para cuidar dos que vivem na outra "cidade", a "cidade" ignorada dos viadutos, dos caixotes de papelão e vãos de porta, uma "cidade" onde "vive" gente que deve ser tratada como gente!
 

Brevemente, parto para a fase final do meu estágio e, nesta fase, devo implementar um projeto de intervenção, que desenhei o ano passado, com o qual pretendo juntar duas realidades que a sociedade teima manter à sua margem, excluídas, desejando que desta junção e troca de sensibilidades se consiga demonstrar que todos temos o nosso lugar, apesar de tudo, temos valor a acrescentar a esta sociedade que tanto perde por nos virar a cara.

 

A Deficiência e Eu

November 23, 2015

Por Maria José Parada Ramos.

 

Créditos Imagem: Carlos Nogueira.



AO JORGE FALCATO
e a todas as amigas e amigos que ele me permitiu conhecer.

Muito dos meus amigos ditos normais questionam-me sobre as razões que me levam a interessar pela deficiência. Quase sempre ouvem os meus motivos atentos, mas não posso deixar de pressentir um certo incómodo, quase inquietação. Os próprios deficientes, ao conhecerem-me, querem saber o que me trouxe à causa. Respondo logo que sou amiga de infância de um deles e parece bastar.

Mas ainda antes, preocupava-me muito em miúda com a faculdade sensorial ou motora que mais me custaria perder. O olhar seria o pior, mas não poder ouvir música, o que eu adorava, vinha a seguir. Treinava-me a ser cega, a deslocar-me em casa e a fazer tarefas de olhos fechados. Na escola, de cotovelos na carteira punha as mãos nas orelhas, e fingindo um ar atento, tentava ler nos lábios da professora. Aplicava-me a decorar as imagens do que gostava, as vozes e os sons queridos, e parecia-me que me poderia acomodar, não seria o fim do mundo. Perder as pernas, não me importava, mas em mais velha, quando já não precisasse de brincar. Por enquanto eram-me imprescindíveis para trepar às árvores, saltar à corda e tudo o mais, próprio de quem está a descobrir a vida. Ainda estava longe de imaginar as dificuldades reais que, qualquer que fosse a deficiência, me trariam no quotidiano. E ainda mais longe de compreender a falta, a renúncia, a força que me seria precisa para de uma certa forma renascer.

 

Gostava dos “aleijadinhos” sem repugnância nem curiosidade mórbida. Era a eles que preferia que a minha mãe desse esmolas, porque devia ser-lhes impossível trabalhar e por isso serem mais pobres e necessitados que os outros. E mais tarde, quando me começaram a deixar andar sozinha, era a eles que dava uma parte, confesso pequenina, do meu dinheiro. Essa atitude de assistência aos mais pobres dos mais pobres, à maioria das minorias, como entendo hoje que são os deficientes, perdurou durante anos.

 

Cresci no bairro do Areeiro. Cada quarteirão da minha zona tem um logradouro. O meu está agora transformado em parque de estacionamento e muitas das árvores foram cortadas. É com tristeza e saudade que olho para aquela área que fora de tantas brincadeiras e alegrias, que era como uma clareira protegida dos olhares dos nossos pais por uma barreira de árvores para mim, luxuriantes.

 

Foi aí, nesse jardim, que para mim era paradisíaco, que nós, um bando de miúdos vizinhos, fomos crescendo juntos. Eu era inseparável e incondicional admiradora dum rapazinho a quem chamávamos Tarzan, tal eram as suas proezas nas árvores. Um dia apareceu o Jorge. Vivia noutro quarteirão paralelo ao nosso. Frequentava todas as traseiras do bairro, mas acabou por integrar o nosso grupo. Era magrinho, vestia-se de calças de ganga afuniladas e de camisa aos quadradinhos impecáveis. Quando o nosso Tarzan fazia as suas proezas mais arrojadas, como ficar pendurado no ramo de um árvore pelos dedos dos pés, o Jorge sério e um pouco trémulo, observava-o e depois imitava-o, com sucesso. Eu tanto confiava no primeiro como temia pelo segundo. E não me podia impedir de me sentir mais orgulhosa pelo mais retraído. Em dias mais solitários eu e o Jorge ficávamos deitados nos altos ramos de uma árvore, e, por vezes, com os nossos canivetes inscrevíamos as nossas iniciais lado a lado no tronco destas confidentes silenciosas.

 

Depois essa parte tão feliz da minha vida acabou. O nosso território foi invadido pelos “grandes” que vinham jogar futebol. Eu já tinha uns treze anos, o meu pai proibiu-me tais coabitações. E se continuei a seguir o Tarzan durante a nossa adolescência, perdi o Jorge de vista.

 

Foi numa manifestação depois do 25 de Abril que o tornei a ver. Cada um pelo seu partido, que eram entre eles inimigos, arrancando pedras da calçada, destemidos frente às forças da ordem. Olhámo-nos sem nos falar.

 

Depois fui viver para o estrangeiro e só tive notícias dele quando foi ferido por uma bala numa manifestação, que o tornou paraplégico aos vinte e quatro anos. O meu desgosto foi enorme, e a minha amizade sempre viva curvou-se de respeito por ele.

 

Um dia, durante umas férias em Lisboa, passeando com o Tarzan, este disse-me que tinha de me levar a visitá-lo pois ele andava muito triste. Não o consegui imaginar muito triste. Ou sempre triste. A deficiência não podia ter dado cabo do seu entusiasmo e coragem de outrora, não podia ter quebrado a sua personalidade combativa e positiva. Estava casado, tinha uma filha, e trabalhava. Devia ter saudades de tudo o que não poderia mais fazer, ele que sentia a necessidade de desatar a correr pelas avenidas como se fosse perseguido por uma horda de cães enraivecidos. O certo é que acabei por nunca o ir ver.

 

Passaram-se anos até o reencontrar em 2010, curiosamente através do Facebook, por mim, na altura, pouco utilizado. De facto, pelo meu trabalho como trabalhadora independente, já estava bastante ocupada e ligada às minhas redes profissionais. Até que apareceram familiares e amigos portugueses à minha procura. Entre os quais os do jardim. Ao Jorge chegaria mais tarde. Nesse mesmo dia escrevemo-nos e prolongámos a conversa ao telefone.

 

Falámos e foi como se tivesse sido no dia anterior. É assim com os velhos amigos. Afinal o Jorge era como eu. Tinha sido feliz ou menos feliz, a ventura é feita de momentos, não é um estado permanente.

 

Mas o que importa aqui é que aprendi imenso com ele sobre a deficiência e de como viver com ela. Ele era arquitecto e integrava a equipa do plano de acessibilidade de Lisboa. O seu trabalho constituía em melhorar a adaptar a cidade às pessoas com deficiência e aos idosos, e não deixar que acontecesse o contrário. Achei que era um emprego fantástico e útil para todos. Nenhum de nós está imune a uma doença ou acidente, quanto mais não seja, pelo modo como as cidades estão construídas. Politicamente, continuava muito informado e activo. Modesto, apenas na ocasião de uma das suas viagens ao estrangeiro compreendi que ainda participava em inúmeros congressos e conferências. Um homem deficiente sim, mas independente que, como ele dizia, não era nenhum coitadinho, interessado em chamar a atenção pública para os problemas que os deficientes enfrentavam no seu dia-a-dia.

 

Esta preocupação, uns dois anos depois, levou-o, com outros deficientes, a fundar o Movimento dos (d)Eficientes Indignados. Consideravam que não eram “vítimas” da deficiência mas da sociedade, que não só os ignorava, como os fazia sentir cidadãos de segunda classe. Queriam uma melhor qualidade de vida, e queriam acabar com a segregação a que estavam sujeitos. Eram deficientes e estavam indignados.

 

Nesta altura percebi que poderia contribuir para a denúncia urgente da situação do deficiente na nossa sociedade, e ajudar, modestamente no que me seria pedido e divulgar o máximo possível a situação.

 

A partir da constituição desta associação, o meu amigo ficou ainda mais ocupado. Tinha poucos contactos com ele, mas ia seguindo as suas lutas pelo Facebook e pela comunicação social. Tinha havido uma Marcha pela Igualdade e lembro-me de terem acompanhado dias e noites uma greve de fome da iniciativa de um deles, Eduardo Jorge, um activista paraplégico, em frente à Assembleia da República, na esperança que os grupos parlamentares apresentassem uma lei de autonomia pessoal. Apareciam em inúmeros eventos e fui-me familiarizando com os seus amigos aí presentes, quase sempre os mesmos, o que fui entendendo que acontecia por razões de mobilidade. Aos poucos fui tomando consciência desse outro mundo que, por razões sociais, não é visível.

 

Vim viver para Lisboa em meados de Outubro de 2013. Passados poucos dias fui à manifestação contra o Orçamento do Estado. Na praça do Rossio, o cortejo ainda estava parado. Na primeira linha estavam, lado a lado, uma série de cadeiras de rodas. Fiquei a observá-los uns instantes. Distinguiam-se dos outros manifestantes pelo ar sorridente e descontraído. Sentia uma grande proximidade e cumplicidade. Irradiavam dignidade e bem-estar. E no entanto o percurso seria mais difícil para eles e para os seus acompanhantes até São Bento. Acabei por ir falar com o Jorge e fiquei surpreendida com o carinho com que os seus vizinhos me cumprimentaram.

 

E foi assim noutros eventos a que pude assistir. Se alguma diferença existe nos deficientes, é serem particularmente desinteressados e encantadores. Fui ficando amiga de alguns deles, pessoalmente. Ou no Facebook, afinal um lugar onde é fácil uma pessoa deslocar-se…

 

Foi logo no seguinte 3 de Dezembro, dia Internacional da Deficiência, que fui assistir a uma conferência sobre a Vida Independente. Ai tive a oportunidade de ver a amplitude que o Movimento dos (d)Eficientes Indignados tinha alcançado. E como lutavam por terem uma vida independente, por terem a oportunidade de escolher onde, com quem e como viver a sua própria vida e, acima de tudo, de serem considerados cidadãos como os outros. Percebi nesse dia que pessoas com a mesma deficiência podem ter vidas completamente diferentes. Admirei os menos dependentes por lutarem pelos que estavam dependentes das famílias ou institucionalizados, admirei os menos autónomos e os quase invisíveis pelo esforço que fizeram para assistir ou mandar testemunhos. Eram como nós, únicos, iguais, diferentes e interdependentes.

 

É também com orgulho que tenho visto aumentar o número de emissões e artigos sobre a deficiência, nos quais intervêm um ou outro dos meus amigos. A sexualidade dos deficientes foi desmitificada, muitas vezes julgada como inexistente ou perversa. E, este ano, o Centro de Vida Independente foi desenvolvido na Câmara Municipal de Lisboa, que se aliou à batalha dos cidadãos com deficiência.

 

No momento em que escrevo este texto, é com grande satisfação que soube que o Jorge Falcato aceitou o convite do Bloco de Esquerda para se candidatar nas próximas eleições legislativas. Está em quinto lugar e não é impossível que ganhe. Nesse caso, vai ter uma grande responsabilidade, mas sei que a irá assumir. Como diz o Rui Machado “Há 1 792 719 de pessoas com alguma dificuldade funcional e cabem todas na cadeira do Jorge Falcato”. E já se prevêem algumas obras a fazer na Assembleia, pois não há acesso para possíveis candidatos cadeirantes.

 

É verdade. Que saibam os meus amigos que a minha causa principal é a luta dos deficientes pelo seu lugar na nossa sociedade que talvez um dia seja o nosso também. E cito para terminar o Jorge Falcato “A deficiência não é uma questão médica, nem de caridade, nem de assistencialismo. É uma questão de direitos humanos e direitos humanos não são regalias”.

 

 

 

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